Hayao Miyazaki volta da aposentadoria com O Menino e a Garça, belíssimo filme sobre autorreflexão.
Em 2013, após o lançamento de Vidas ao Vento, Hayao Miyazaki anunciou sua aposentadoria, que, segundo ele, desta vez era real. Porém, a real aposentadoria não durou muito tempo. Ainda em 2016, o co-fundador do Studio Ghibli entrou em contato com Toshio Suzuki – também co-fundador e presidente do estúdio de animação japonês – para dizer que gostaria de fazer outro filme. Quase recebendo uma recusa de Suzuki, Miyazaki conseguiu luz verde para o filme graças ao seu empenho para produzir uma animação baseada em sua infância.
O Menino e a Garça chegou aos cinemas brasileiros esta semana. Entretanto, o longa teve sua estreia original em julho do ano passado, recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Animação e garantiu dois prêmios até o momento (um BAFTA e um Globo de Ouro na mesma categoria). O filme conta a história do jovem Mahito depois dele perder a mãe na segunda guerra mundial. Desolado e sem rumo, ele e seu pai mudam-se para uma residência de sua família no campo, no interior do Japão.
De início, Miyazaki não perde tempo em retratar a guerra e seu horror, e o tom autobiográfico do filme vai ficando cada vez mais claro. Da mesma forma como seu próprio pai, o pai de Mahito trabalha em uma fábrica de peças de avião enquanto o jovem é cuidado pela madrasta, com quem ele não possui um bom relacionamento. A aviação na filmografia do cineasta passa longe de ser uma novidade. Basicamente todo filme de Miyazaki aborda de alguma maneira o fascínio do autor pelas máquinas aéreas. Mas aqui, ele deixa de lado essa admiração para dar lugar à reflexão do seu próprio passado. Se podemos indicar na aviação um elemento característico das obras de Miyazaki que ficou de lado, ele também troca sua predileção por personagens femininas por um personagem masculino. O animador ainda possui duas grandes personagens femininas no longa e o foco de Mahito é voltado para elas, mas, desta vez, a jornada e a busca pelo objetivo tem como fim o próprio Mahito, diferentemente do que o cineasta fez em O Castelo no Céu (1986).
Sem se acostumar com a nova vida, o jovem começa a ser perseguido por uma garça cinzenta e, então, ele decide matá-la. Contudo, ele é guiado, através de uma promessa de que sua mãe ainda está viva, para um mundo fantástico habitado por pessoas mortas, vivas e animais, e lá ele procura descobrir os segredos desse universo e da sua própria história. No novo mundo, Miyazaki nos leva para uma viagem através do luto, do renascimento, da família, da bondade e da maldade.
É nesse mundo de sonhos que o cineasta traz suas alegorias, como o exército de periquitos. Aberto para mais possibilidades no mundo fantástico, ele também mostra a tentativa de um universo perfeito, mas intrinsecamente ligado a perversidade dos seres que o habitam – sejam originários daquele lugar ou levados contra sua vontade. Desse modo, Mahito e a garça podem ir entendendo-se e refletindo sobre o modo como lidam com as coisas mundanas.
Redundância é falar sobre o talento artístico de Miyazaki, mas temos que reconhecer que, aos 83 anos, o diretor não perdeu nenhuma gota de sua magia. Os traços de O Menino e a Garça mantêm o registro gráfico da Ghibli e ainda podemos perceber a incorporação de novas tecnologias. A riqueza de detalhes de tudo que cerca o universo do filme é extraordinária, assim como a trilha sonora composta pelo também veterano Joe Hisaishi, que dita o mundo normal durante a guerra e depois contrapõe-se para dar o ar fantástico do mundo praticamente onírico das aventuras de Mahito e a garça.
Partindo de um mundo real para um mundo fantasioso, podemos dizer que O Menino e a Garça é uma continuação espiritual de A Viagem de Chihiro (2001) e conseguimos afirmar isso pelo final das duas obras que, de certa forma, encontram-se na mesma temática. Mas engana-se quem acha que Miyazaki nos conduz para uma jornada familiar e repetitiva, o diretor escolhe caminhos menos fáceis para contar sua nova história. A jornada de autoconhecimento de Mahito nos proporciona uma bela e delicada animação que, por vezes, não precisa de palavras. E, vivendo numa era onde os filmes estão cada vez mais expositivos, é encantador ver um filme que deixa levar-se pelas imagens e não pelas palavras.
Fiquem ligados no Mestre para mais críticas!