A nova temporada de True Detective foi apelidada de Terra Noturna (Night Country, no original), sendo a única a ter uma alcunha/subtítulo.
Na ânsia de tentar explicar as coisas, muitas vezes precisamos alicerçar as ideias em definições consagradas de áreas importantes do conhecimento — domínios com o potencial de, seja por exatidão ou analogia, auxiliar no entendimento de fatos controversos. E é bastante inquietante ver True Detective ter ápices diversos, acertando em todas as suas iterações até se perder, justamente por não perceber qual o próximo quadrado da amarelinha onde deve pular. Ou, pior ainda do que não saber para onde ir: vamos impor ao público as respostas não obtidas, e com isso na prática designar uma atitude de projeção sobre ele? Porque neste caso, o problema reside nele e em sua percepção, e não em você.
Em “Vocabulário da Psicanálise” (Laplanch e Pontalis, 1967), temos uma definição adequada para essa palavra reservada em psicologia e psiquiatria: “o sujeito atribui a outros as tendências, os desejos, etc., que desconhece em si mesmo” (p. 375, f). Se o desconhecimento da própria identidade é um atributo, e não uma virtude, então não se trata de uma qualidade apreciável. E aí, se não tiver certeza do que se quer, qual será o próximo passo? Dar um chute? Esperar acertar de primeira a direção exata na qual deve seguir? Como presumir que um público fidelizado espera algo diferente?
Não se pode mais subestimar os espectadores. Devido à facilidade de comunicação e troca de informações em nossa era, bem como à variedade de plataformas avaliadoras, é cada vez mais difícil enganá-los, famintos que são, com migalhas quixotescas colocadas aqui e ali. Não, é pior ainda: o público pode não precisar de um banquete, mas com toda certeza fará questão de um bom prato.
Terra Noturna (Night Country, no original) é a quarta temporada de uma série sem seu MVP, nos dois sentidos da sigla: Nic Pizzolato era claramente o principal jogador da sua liga até ser dispensado dela; era quem fazia toda a iniciativa se destacar em função da consistência nas características das temporadas anteriores, nas quais escreveu primorosamente. A série sempre se caracterizou por colocar as imperfeições humanas no alvo de sua lente e por expor, no nível das idiossincrasias, malfeitorias, conspirações e redescobertas, todo o substrato da densidade de uma das produções mais brilhantes da HBO.
E mesmo na acepção de produto mínimo viável, a sigla assustadoramente ainda faz sentido na frase: não duvidamos do menor esforço no seu desenvolvimento, mas definitivamente não temos a versão mais simples do produto normalmente vendido.
Uma questão de tom
Fosse na solidão das pistas de Louisiana, no céu marrom da Califórnia ou no verde dos Ozarks, o fato é que a locação sempre deu o tom da produção, mas nunca foi capaz de influir de forma a reduzir os objetivos gerais buscados pelos episódios — a reflexão sobre o erro em sua essência mais dura, em sua casca mais inquebrável. Os personagens em geral tem laconismo como marca; especialmente os protagonistas, núcleo onde a dinâmica sempre foi crucial.
A arrogância no desconhecimento, comum na primeira temporada entre Rust e Marty; a troca constante de posições digna de toco y me voy do futebol argentino, entre Velcoro, Bezzerides e Woodrugh na segunda; a emoção extrema em Hays e West, além do papel da memória na perspectiva da vida, na terceira. No mais, era aplicar ao roteiro da próxima temporada, ao altíssimo nível de produção e ao estilo de direção dominante de cada season o nível necessário de intriga, controvérsia e truculência, e pronto! Teríamos outra temporada acima da média.
A falta da escrita de Pizzolato serve para estabelecer uma relação de causalidade com a qualidade baixíssima de acontecimentos. A começar, como falamos antes, pela locação. O clima gelado na fictícia cidade de Ennis, localizada no Alaska, tem uma relação opressora com os personagens — e não é nossa intenção aqui ditar o frio polar como fator de motivação. A questão é que essa escolha atrapalha o espectador na hora de alcançar os personagens em suas imperfeições, modus operandi estabelecido ao longo dos últimos anos.
É um obstáculo. A audiência quer compreender o personagem que, por motivos distintos, não ama a própria vida. É desnecessário insistir repetidamente em mostrar a luta de todos contra a neve e as tempestades geladas, pois não cabem mais elaborações a partir deste fato quando o entendemos. A nossa compreensão não é o problema. Ok, já compreendemos que Sub-Zero mora num iglu próximo. Vamos andar com a trama?
O que qualquer fã espera de uma série de suspense e drama? Uma pista pode ser atribuída a Dan Brown, famoso escritor de romances como O Código Da Vinci e Anjos e Demônios: em sua Masterclass, o autor defende a entrega de algo relevante e sem mais ruídos para quem espera por respostas. E aqui está um exemplo óbvio quanto a nem toda novidade ser relevante, especialmente quando de facto não se é novidade: conforme amplamente noticiado, Carcosa e o Rei Amarelo, noções mitológicas pagãs norteadoras dos acontecimentos chocantes da primeira temporada, foram adicionados a Terra Noturna como elementos da narrativa.
A ideia claramente era a de auxiliar na explicação sobre a origem e a justificativa do crime cometido na temporada atual.
E qual foi o resultado? Tal mescla não tem efeito diferente de qualquer mito que pudesse ser inserido; em outras palavras, o fato de a escolha ser esta alegoria, e não outra, não fez a menor diferença. Esse fato específico, desvendado ao longo de vários episódios e, portanto, valioso para a audiência do programa, foi banalizado. Esta foi a verdadeira consequência. Reduzir o valor dos eventos ocorridos na primeira temporada não acrescenta brilho à nova, pois soa mais como vilipêndio do que como homenagem. Ser nerd e buscar referências é desejável porque conecta True Detective ao zeitgeist? Certamente, mas não quando tudo é realizado sem propósito. Tal atitude desvaloriza as descobertas feitas com tanto esforço há quase dez anos.
Por quê?
E aí, essa é a pergunta que fica.
Por que o uso de itens tão importantes em perspectivas tão empobrecedoras? A batalha dos nativos pela sua própria cultura é algo digno de ser celebrado e valorizado em qualquer espaço no planeta, seja na realidade ou na ficção. Mas a inspiração congelada de Terra Noturna surpreendeu: a única coisa conseguida pela série, com esse lado expresso nos episódios, foi apenas desviar a atenção do público, em vez de aproveitar o curto espaço de seis episódios para aprofundar e enriquecer a trama principal.
Sobretudo no ângulo de Leah (Isabella Star LaBlanc), a filha da protagonista Liz Danvers (Jodie Foster, a Clarice de O Silêncio dos Inocentes): a luta de Leah obrigaria Liz a encarar facetas distintas na relação com a filha, algo positivo na temporada, mas não justifica seu uso a nível de entendimento de enredo, escolhas criativas ou profundidade emocional dos personagens. A própria cena de pancadaria nos últimos episódios ilustra isto como uma tentativa simplista de aumentar o tamanho de algo que, como todo o resto, acabou sendo reduzido. Um personagem é espancado, mas prontamente afastado para o conforto de um tratamento especial… que não educa ninguém. De novo: por que essas escolhas, se há tanta superficialidade?
Cabe salientar que a interpretação não necessariamente decepciona.
Vemos qualidade aqui e ali em Liz Danvers ser policial sistemática sem muito jogo de cintura, mas com méritos administrativos, digamos assim; Navarro, ainda mais bruta (Reis é boxeadora, além de atriz, e das boas), capitaliza em ser pé-na-porta full on heavy metal quase sempre. Peter Prior (Finn Bennett), a parte jovial da jornada investigativa, participa de forma muito interessante no contraste entre vida pessoal e trabalho, e se desconstrói com acontecimentos impactantes, sendo talvez o único elo de conexão emocional com a audiência. Hank (John Hawkes), pai de Peter, é o personagem mais óbvio possível, o que certamente facilita muito o trabalho de seu intérprete.
O elenco pode até ser uma boa moldura, mas ela não salva uma arte interior medíocre.
Terra Noturna em demasia
A temporada é notável na arte de conseguir imprimir um ritmo tão lento em apenas seis episódios. E aqui começa a se formar uma visão norteadora dessa crítica: estávamos todos prontos para sair apaixonados por Night Country. Porém, nem a neve, nem o roteiro, e nem a inserção no lore de True Detective encoraja, caracteriza ou induz o show a momentos agudos. É tudo muito lento, baseado em diálogos simples e cenas muito parecidas com outras já vistas por nós em outras séries. E essa negativa peculiaridade é mérito exclusivo de Terra Noturna.
True Detective é destemido quanto a mostrar violência e maldade, mesmo sem ser necessariamente gráfico. A dramatização de cenas difíceis como chacinas, relações insanas, conspirações de altíssimo nível, fim trágico para pessoas de boa fé… São todas questões comuns na série. O desconforto é seu próprio dicionário. Mas é preciso perceber a diferença entre causar desconforto intencionalmente na audiência – e esta, sim, acreditamos ser a argumentação definitiva sobre sua relevância – e meramente dizer que desconforto é uma sensação ruim, como feito aqui, como se a questão fosse apenas o convencimento.
Ironicamente, o pior desgosto é sentido pela audiência ao perceber a pauperização sofrida por esse universo, quando até então gozava de sua originalidade e a poderia bradar em direção a qualquer um. Projetar na audiência e na simplicidade de todo o painel de séries investigativas atuais o que True Detective não conseguiu ser (e nem descobriu se quer ser) é um precedente perigoso, por colocar em risco a credibilidade em seu nome. Isso poderia ser evitado com o esmero diferenciado da franquia, tão imensamente característico.
Saudades dele!
Nota: 6/10
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