Na noite do dia 2 de outubro, tivemos a pré-estreia brasileira de Coringa (Joker, no original). O filme da Warner traz a responsabilidade de setar um vilão próprio e com uma pegada bastante particular. E já nasceu como um sucesso de crítica. Ainda assim, surpreende positivamente, sobretudo pela qualidade da atuação de Joaquin Phoenix. Por conseguinte, o longa dá luz a um conceito enfraquecido à essa altura, mas muito coerente no frenesi dos mundos de super-heróis cinematográficos: todo gosto merece respeito, independentemente de qualquer viés adotado na avaliação.
Personagem icônico da cultura pop, o palhaço do crime aqui é uma ode à imersão. A atuação ultra comentada de Joaquin Phoenix é justificada em função da intensidade na qual o trabalho é desenvolvido. Todd Philips, diretor conhecido por trabalhos como Se Beber, Não Case (2009) e Starsky & Hutch: Justiça em Dobro (2004), acabou sendo extremamente feliz ao recrutar o protagonista. Vale lembrar que, em entrevistas recentes, o diretor fez questão de pontuar algo interessante. Eles se encontraram por vários meses antes do início da produção. Afinal, seria importante ter em mente exatamente que tipo de produto tentariam vender a Hollywood. Se fosse para fazer, pois que fosse realmente especial.
E o pior é que é. A DC está de volta, rindo alto.
Critério?
Da risada que deixa apreensivo àquela que é interrompida de repente por um olhar sério… Será honesto o sorriso de Arthur? E até que ponto a insanidade se sobrepõe ao sofrimento? Até que ponto o contexto da vida de alguém influencia sobre as decisões? Até que ponto vai a coerência, e onde começa a loucura? Aqui, a boa notícia é que nem tudo fica plenamente respondido. Da mesma forma, um pouco mais objetivo do que se espera, o filme tem pouco mais de duas horas de duração. A suficiência, no entanto, pode facilmente ser relativizada; afinal, ninguém pensa duas vezes ao dizer que um filme é longo demais quando se perde tempo. Não podemos mudar o critério.
A fotografia é um show à parte, e ambienta com clareza o filme numa Gotham City que, se ainda não tem a movimentação trazida pelo Morcego, já tem o clima de corrupção, tensão e desigualdade na sociedade tão comum às histórias do herói. Aqui, há surpresas na trilha sonora e até na mixagem, que priorizam menos regiões mais altas do espectro enquanto usam perfis mais radiofônicos para diálogos e falas de TV, como em eletrônicos antigos. A curadoria musical, dotada de saudosismo noir, traz uma temperatura fria, lo-fi e retrô. A depravação social na inserção encontrada pela produção fortalece, enriquece e em vários pontos até justifica ações de Fleck.
Emocionando
Papel num mundo polêmico? É o dele. Alguém que não teme ser bom filho e facialmente demonstra, para ambas as audiências (a nossa e a do filme, primeiramente), que risadas incomodam. A precisão de Joaquin nesse sentido é incrível, emociona. Por que não cuidar da minha mãe? Qual o problema de morar com ela? “É o filho que qualquer um de nós desejaria.” E a crítica é tão volumosa, quanto à voz ouvida no filme, que chega a ser inacreditável a pobreza do debate público. Hoje, a vaguidão das palavras que permeiam ideias como a de que o filme fala pelos Incel. É uma área muito cinzenta, mas não fugiremos da raia.
Às avessas da arte
A politização do subtexto presente no filme é uma bobagem enorme. Em momento algum o filme foi feito com essa intenção. As palavras exatas do diretor sobre isso foram: é um filme sobre caras tomando decisões ruins, o que leva à confusão e ao caos — coisa que ele ama. Em conclusão, trata-se de uma armadilha que permite que todo ponto artístico do filme possa ser discutido, mas às avessas da arte que o compõe. Além do mais, é desonesto utilizá-lo como ferramenta para propor um debate público que não acontece pela limitação social que todos temos. Coringa continua sendo um filme que merece ser apreciado no que lhe foi desenvolvido como âmago. Um filme, que fala sobre um vilão que nasce, um herói que morre e duas metades que se somam e inevitavelmente se percebem.
Primeiramente, não se pode abandonar a arte, que pode e deve chocar se necessário. Se a violência é clara em Coringa e se a provocação é pertinente, cabe a cada um de nós destacar. Mas é nessas horas que os Tempos Modernos podem falar com mais base, quase numa obsessão anti-falaciosa. O grande Charlie Chaplin sintetiza a ideia do filme fortemente perante toda a crítica que o cerca.
(Arthur) é e continua sendo somente um palhaço. E isso o põe num plano muito mais alto do que o de qualquer (tema) político.
Então vai lá… tenta a sorte.
Sobreviver ao tempo
No início, a dúvida foi geral. Diante de um noticiário que garantia um personagem recentemente mal adaptado nos anos 80, num momento em que o mundo praticamente estabelecia uma tendência de gosto pelo universo compartilhado, sobravam dúvidas, incertezas e baixa expectativa. Praticamente todos os veículos, num momento de reflexão comum especialmente com base nas notícias de planejamento compartilhadas por todos, desdenharam da ideia de Coringa. Então, precisa ser reconhecido que se faltou tato no início, o trabalho em si foi muito duro. Além disso, a ideia foi excepcional e só não se encaixaria na opinião dominante — e convenhamos, de modo geral vai um abismo entre a opinião, ainda que embasada, e seu sentido — que tende a não sobreviver ao tempo. Coringa nasceu aí.
E o resultado é um filme digno, numa atuação histórica e que fala em negrito — com cenas para rir, chorar e se chocar. E especificamente aí, já não terão tantas verdades pra dizer. Pois é: basta surgir alguém falando diferente que o resultado é a repulsa. A bolha é opcional.
ha-ha-ha